Génese
das canções
«O
povo das nossas províncias do norte é, pelas condições da sua mesma existência,
resignado, trabalhador e pacifico. Por isso as suas canções são alegres como as
dos pássaros : refletem, sobre um nítido fundo tradicional os aspectos
luminosos, variados, da natureza.
O Minho, a província mais setentrional
do país, deve servir-nos de tipo na caracterização psicológica do povo do norte.
Foi n’esta província que primeiro pulsou a alma portuguesa.
Foi aqui, n’uma nesga
de chão desmembrado da Galiza, que se desenrolaram os mais remotos preliminares
da nossa independência. É, portanto, aqui, que devemos procurar os vestígios primitivos
d’esse espírito de nacionalidade, que depois de nos ter feito livres nos tornou
grandes.
Por cima do rio Minho passaram as correntes poéticas do sentimento
seguindo o caminho das correntes étnicas, e trazendo um vago perfume d'esse longínquo
lirismo provençal, que depois se aristocratizou nos cancioneiros dos trovadores
galaico - portugueses.
O povo recebeu a impressão trovadoresca, identificou-se com
a essência subjetiva das gaias canções,
especialmente com a intenção amorosa dos cantares
d’amigo, mas repeliu o metro d’arte maior, porque a versificação nasce espontaneamente
do génio rítmico da língua.
Os
aspetos da natureza, as condições museológicas, favoreceram a aclimatação de todos
os elementos ideais e pitorescos; dir-se-ia que os montes e os vales abriram
carinhosamente os braços para acalentar com maternal desvelo as primeiras emoções
da alma nacional.
Quando, batendo as asas, chega a Lisboa uma canção que derrama
gorgeios, que vive, palpita e parece bailar no azul, podemos afirmar que ela chega
do claro rincão do Minho, como ave de arribação que emigra cantando.
Sempre que
passa sobre os muros da capital, essa canção em viagem, vibrante de folia aldeã
ou de vigor coreográfico, como por exemplo, … ora vai tu, risca ao lado e a caninha verde, parece trazer consigo
e mostrar-nos de longe, voando sempre, um trecho da fugidia paisagem do Minho, aberta
em sorrisos, suspensa das suas azas sonoras.
É um relance de sol que passa e foge;
que não chega a penetrar no repertório alfacinha, onde apenas o Fado se entronisou com todo o
seu cortejo de soluços e lágrimas.
O povo de Lisboa não se afeiçoa ás canções do
norte, que se lhe afiguram vindas de outro país muito diferente; e a Caninha verde, quando dançada no palco pelas actrízes da capital, é um produto exótico, desnaturado, amortecido.
Para
compreender e sentir
as canções do norte
é preciso ir colhê-las na origem. Então, a par dos fatores étnicos, a
própria
natureza se encarrega de explicá-las.
A terra é verde e fecunda; produz
sorrindo.
Paga bem a quem a trabalha. A agua corre saltitante no vale e no monte.
Os rios
são cristalinos e amenos.
A vegetação baralha, n’uma prodigalidade
magnificente,
todas as graduações da verdura. Só Deus podia ser o joalheiro capaz de
compor unicamente
com a esmeralda um colar de tão diversos tons, substituindo a monotonia
pela variedade.
Aonde não chega a seara nem a vinha, está o pinheiral aveludado, o mato
florido.
No cimo dos montes, onde o granito toma o lugar do húmus, a aridez da
pedra é adoçada
pela ermidasinha branca, cheia de luz e de fé. A propriedade, dividida e
pequena, não cria invejas nem ódios.
Parece sujeita a um regime de
igualdade, que produz
este notável facto económico: não haver ricos, nem pobres. Há apenas
proprietários
remediados.
As grandes herdades do Alentejo, os grandes vinhedos da
Extremadura
não chegam a ser compreendidos pelo lavrador minhoto, que constantemente
ouve cantar
o galo no quintal do vizinho.
Frequentemente sucede encravarem-se umas
nas
outras as terras de diferentes donos, em retalhinhos, em fracções, n’uma
paz octaviana,
que só costuma ser perturbada pela disputa sobre a agua de rega.
Estes
litígios
originam-se na própria promiscuidade das terras, que se confundem e
misturam,
de modo que se não sabe bem quando a agua é d’este proprietário ou de
outro, porque
parece ser de todos».
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