Autor:Guy Bechtel
1ª Edição. Janeiro de 1999
"A Carne, o Diabo e o Confessor", de Guy Bechtel, é a história de uma "ambição imensa que nem sequer o fascismo ou o comunismo, ideologias ridiculamemte inquisitoriais e moralizadoras, ousaram intentar".
Que ambição é esta?
A que a Igreja Católica Apostólica Romana teve (teve?), "através da confissão obrigatória, periódica e detalhada dos pecados aos confessores", de "pôr a mão em cima da vida pessoal mais íntima dos indivíduos e, mais especialmente, dos casais".
Durante séculos, escreve Bechtel, "num curioso 'ménage à trois', o confessor deitou-se todas as noites no leito conjugal" - "Onde Estaline se detinha à porta da alcova, a Igreja pretendia deslizar para o meio dos lençóis".
Diga-se desde já que, apesar das aparências, o autor não pretende ser polémico, nem "terrorista", nem sequer fazer a "reclamação utópica de uma total liberdade sexual".
Por exemplo: quando ele fala daqueles teólogos que no século XVII entretiveram o tempo decidindo se "um caldo tomado como clister quebrava o jejum e portanto impedia a comunhão", não o faz com o intuito provocatório usado, em pleno furor anticlerical oitocentista, por Léo Taxil, que dizia que se tratava de saber "se a Santíssima Trindade e o clister nutritivo tinham hipóteses de se encontrar no tubo dos comungantes".Bechtel parece-nos até ser um historiador comedido (tenta "ser menos pornográfico do que os [...] antecessores clericais ou anticlericais");
bem intencionado (sugere que, dado o primeiro passo com a revisão do caso Galileu, a Igreja vire mais decididamente o feitiço contra o feiticeiro, ou seja, faça um "mea culpa" que abranja generosamente a Inquisição e outros pecados igualmente pouco originais);
e preocupado (o último "Catecismo" católico, que é do início desta década, não deixa alternativa a quem vê na confissão uma das causas da "descristianização" do Ocidente; ainda por cima numa altura em que o mercado dos "apaziguadores" está cheio de profissionais - psicólogos, psicanalistas, astrólogos, etc. - não menos preparados do que os padres e seguramente mais "permissivos" do que eles, embora mais caros).
O que Bechtel não consegue é deixar de fazer algumas perguntas: "Que palavras de Jesus, que textos dos Evangelhos levaram São Clemente (150-211) ou Monsenhor Claret por volta de 1860 a interrogar-se sobre o esperma?
São Barnabé desde o século primeiro a preocupar-se com o lado pecaminoso da felação?
Monsenhor Bouvier (1783-1854) a descrever as consequências morais do coito praticado entre as coxas de uma mulher [...]
ou Pierre de la Palud (morto em 1342) a interessar-se pela sodomia ou a procurar substitutos para o coito demasiado pecador?
E tantos autores a comentar com tantos detalhes as faltas constituídas pelo estupro, as titilações, os beijos lascivos, os supositórios com pimenta, os médicos que na sua profissão vêem demasiadas vulvas, a masturbação que torna uma pessoa surda ou doida, os banhos sem fato-de-banho, a maquilhagem das mulheres, os decotes, o acto amoroso praticado 'more canino'?"...
A tentativa de responder a perguntas como estas resulta na história de uma obsessão totalitária, a obsessão da Igreja em policiar até ao mais ínfimo e íntimo pormenor os actos e a consciência (ainda não se inventara o inconsciente) dos crentes, a obsessão de "saber tudo acerca de tudo", e especialmente saber tudo acerca das práticas sexuais dos fiéis.
Para a Igreja, que quando não interdita obriga, o sexo foi sempre sulfuroso, mesmo quando instrumento de procriação.
Verdadeira "cruzada interior", não menos violenta e tortuosa do que as outras, que os penitenciários medievais (catálogos de pecados e respectivas penitências, para uso dos sacerdotes confessores) e depois os "dicionários de casos de consciência" (autênticos manuais de instruções para inquisidores de confessionário bem manipularem a consciência e a culpa dos carnais pecadores) documentam.
O detalhe pornográfico e sistemático com que a Igreja procura deslizar para o meio dos lençóis dos seus fiéis é o que caracteriza estes manuais: não basta saber se os paroquianos se masturbam ou não - há que saber se eles pecam com a mão esquerda ou com a direita, ou com ambas;
há que saber se a mulher que pecou bestialmente com um cão usou "saliva ou pão na matriz [...] para que o animal [lhe] lamba as partes púdicas".
Bechtel percorre esses manuais e conclui, quanto aos pecados susceptíveis de serem praticados por padres e bispos compendiados num deles, que nem os "maiores inimigos da Igreja, no final do século XIX, quando se acusavam os padres das piores torpezas" foram capazes de os imaginar.
Numa vertigem catalogadora de fazer inveja a Sade, os autores desses guias inventariam gulosamente todas as formas e feitios possíveis e imagináveis de pecar com o sexo.
.O tema passou à história e entedia? Olhem que não!, olhem que não...
A Igreja comove-se muito lentamente: vejam-se os seus mandamentos actuais sobre contracepção, uso do preservativo, homossexualidade...
De resto, Bechtel termina abrindo para uma questão mais vasta: a de saber até que ponto é o Ocidente "filho da confissão" (basta lembrar a fortuna da autocrítica estalinista).
Em resumo: um livro divertido e educativo. Nada (quase) a obstar.*
* Texto Jornal " Público "
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